O gesso invisível

A maioria das pessoas guarda diversos segredos de dor sob um gesso invisível, que recobre todo o corpo, esperando que alguém de carne, osso e dores semelhantes apareça para ajudá-las a remover esse gesso — nem que seja aos poucos.

Só que quase nunca aparece ninguém. E o gesso permanece lá, até o fim da nossa existência.


Eu também tenho o meu gesso, e ele tem a mesma idade do meu corpo.

No início, foi colocado para proteger minhas pernas.

Logo em seguida, subiu meticulosamente da cintura para cima.

E, aos vinte e poucos anos, já cobria do peito até a cabeça.


O meu gesso não é branquinho como a neve.

Ele tem um tom cinza, e carrega vários nomes pichados.

São nomes de pessoas e ressentimentos que eu gostaria de esquecer para sempre.

Mas eu me lembro.

Lembro que, muitas vezes, esse gesso foi colado para me ajudar a perceber o quanto somos frágeis —

e como nosso coração e nossos sentimentos estão, o tempo todo, prestes a se curar… ou não.

Só que tudo depende de nós.

Depende do nosso entendimento interior.

E isso também depende muito do que somos — e do que queremos ser.


Ontem, enquanto conversávamos sobre as marcas que nos perseguem,

eu olhei em sua direção e vi, através do seu sorriso, que você, assim como eu,

estava tentando dizer que não é preciso falar sobre certos traumas ou dores do passado

para se ter certeza de que elas sempre estiveram lá,

nos impedindo de sermos melhores,

nos impedindo de alcançar, de fato, o último estágio da nossa felicidade.


Percebi também que você, assim como eu, precisava se sentar diante do mar e contemplar o silêncio.

E que, quando os barulhos das dores antigas finalmente se transformassem no silêncio necessário,

deveríamos então enterrá-los — junto com um pedaço do gesso que recobre nosso corpo.


Porque não podemos continuar esperando que alguém nos ajude a remover algo

que só cabe a nós separar: as partes que já estão curadas

daquelas que ainda precisam de mais tempo.


De um modo geral, esse gesso é a nossa alma.

E se ela será forte ou fraca, remendada ou cheia de pinos,

não cabe a ninguém decidir.


Aprendi, nos últimos anos, que nossa luta é impessoal e intransferível —

mas, acima de tudo, é necessária.


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