(Sonetos) Desvendando o mistério.


Soneto 12

Quando a hora dobra em triste e tardo toque
E em noite horrenda vejo escoar-se o dia,
Quando vejo esvair-se a violeta,
ou queA prata a preta têmpora assedia;
Quando vejo sem folha o tronco antigo
Que ao rebanho estendia sombra franca
E em feixe atado agora o verde trigo
Seguir o carro, a barba hirsuta e branca;
Sobre tua beleza então questiono
Que há de sofrer do
Tempo a dura prova,
Pois as graças do mundo em abandono
Morrem ao ver nascendo a graça nova.
Contra a foice do Tempo é vão combate,
Salvo a prole, que o enfrenta se te abate.

Quando penso que tudo o quanto cresce
Só prende a perfeição por um momento,
Que neste palco é sombra o que aparece
Velado pelo olhar do firmamento;

Que os homens, como as plantas que germinam,
Do céu têm o que os freie e o que os ajude;
Crescem pujantes e, depois, declinam,
Lembrando apenas sua plenitude.

Então a idéia dessa instável sina
Mais rica ainda te faz ao meu olhar;
Vendo o tempo, em debate com a ruína,

Teu jovem dia em noite transmutar.
Por teu amor com o tempo, então, guerreio,
E o que ele toma, a ti eu presenteio.

~ Soneto 18 ~

Se te comparo a um dia de verão
És por certo mais belo e mais ameno
O vento espalha as folhas pelo chão
E o tempo do verão é bem pequeno

Às vezes brilha o Sol em demasia
Outras vezes obscurece com frieza;
O que é belo declina num só dia,
Na eterna mutação da natureza.

Mas em ti o verão será eterno,
E a beleza que tens não perderás;
Nem chegarás exausta ao triste inverno:

Nestas linhas com o tempo crescerás.
E enquanto nesta terra houver um ser,
Meus versos ardentes te farão viver.

~ Soneto 23 ~

Como no palco o ator que é imperfeito
Faz mal o seu papel só por temor,
Ou quem, por ter repleto de ódio o peito
Vê o coração quebrar-se num tremor,

Em mim, por timidez, fica omitido
O rito mais solene da paixão;
E o meu amor eu vejo enfraquecido,
Vergado pela própria dimensão.

Seja meu livro então minha eloquência,
Arauto mudo do que diz meu peito,
Que implora amor e busca recompensa

Mais que a língua que mais o tenha feito.
Saiba ler o que escreve o amor calado:
Ouvir com os olhos é do amor o detinado.

~ Soneto 53 ~

De que substância foste modelado,
Se com mil vultos o teu vulto medes?
Tantas sombras difundes, enfeixado
Num ser que as prende, e a todas excedes;

Adônis mesmo segue o teu modelo
Em vã, esmaecida imitação;
A face helênica onde pousa o belo
Ganhou em ti maior coloração;

A primavera é cópia desta forma,
A plenitude és tu, em que consiste
O ver que toda graça se transforma

No teu reflexo em tudo quanto existe:
Qualquer beleza externa te revela
Que a alma fiel em ti acha mais bela.

~ Soneto 29 ~

Quando, malquisto da fortuna e do homem,
Comigo a sós lamento o meu estado,
E lanço aos céus os ais que me consomem,
E olhando para mim maldigo calado;

Vendo outro ser mais rico de esperança,
Invejando seu porte e os seus amigos;
Se invejo de um a arte, outro a bonança,
Descontente dos sonhos mais antigos;

Se, desprezado e cheio de amargura,
Penso um momento em vós logo, feliz,
Como a ave que abre as asas para a altura,

Esqueço a lama que o meu ser maldiz:
Pois tão doce é lembrar o que valeis
Que esta sorte eu não troco nem com reis.

~ Soneto 30 ~

Quando à corte silente do pensar
Eu convoco as lembranças do passado,
Suspiro pelo que ontem fui buscar,
Chorando o tempo já desperdiçado,

Afogo olhar em lágrima, tão rara,
Por amigos que a morte anoiteceu;
Pranteio dor que o amor já superara,
Deplorando o que desapareceu.

Posso então lastimar o erro esquecido,
E de tais penas recontar as sagas,
Chorando o já chorado e já sofrido,

Tornando a pagar contas todas pagas.
Mas, amigo, se em ti penso um momento,
Vão-se as perdas e acaba o sofrimento

~ Soneto 35 ~

Não chores mais o erro cometido;
Na fonte, há lodo; a rosa tem espinho;
O sol no eclipse é sol obscurecido;
Na flor também o inseto faz seu ninho;

Erram todos, eu mesmo errei já tanto,
Que te sobram razões de compensar
Com essas faltas minhas tudo quanto
Não terás tu somente a resgatar;

Os sentidos traíram-te, e meu senso
De parte adversa é mais teu defensor,
Se contra mim te recuso, e me convenço

Na batalha do ódio com o amor:
Vítima e cúmplice do criminoso,
Dou-me ao ladrão amado e amoroso.

~ Soneto 65 ~

Se bronze, pedra, terra, mar sem fim
Estão sob o jugo da mortalidade,
Como há de o belo enfrentar fúria assim
Se, como a flor, é só fragilidade?

Como há de o mel do estio respirar
Frente o cerco dos dias, que é implacável,
Se nem rochas o podem enfrentar
Nem porta de aço ao Tempo é impermeável?

Diga-me onde, horrível reflexão,
Pode o belo do Tempo se ocultar?
Seu passo é retardado por que mão?

Quem pode a ruína do belo evitar?
Só se eu este milagre aqui fizer
E a tinta ao meu amor um brilho der.

~ Soneto 91 ~

Alguns cantam seu berço, alguns talento,
Alguns riqueza, alguns seu corpo são,
Alguns as vestes, mesmo de um momento,
Alguns o seu falcão, cavalo ou cão;

Toda emoção traz seu próprio prazer,
Que uma grande alegria neste tem;
Mas não sei desse meu gáudio fazer,
Pois eu supero a todos com um só bem.

Mais que berço pra mim é o teu amor,
Mais rico que a riqueza, que tecido,
Maior do que animal é o teu valor;

Tendo a ti sou por tudo envaidecido:
Sou desgraçado só no tu poderes
Levando tudo, infeliz me fazeres.

~ Soneto 92 ~

Faz teu pior pra mim te afastares,
Enquanto eu viva tu és sempre meu,
Não há mais vida se tu não ficares,
Pois ela vive desse amor que é teu.

Por que hei de temer grande traição
Se tem fim minha vida com a menor;
De vida abençoada eu sou, então,
Por não estar preso ao teu cruel humor.

Tua mente inconstante não me afeta,
Minha vida é ligada à tua sorte;
Como é feliz o fato que decreta

Que sou feliz no amor, feliz na morte!
Porém que graça escapa de temer?
Podes ser falso e eu sequer saber.

1609-2011 — Sonetos de Shakespeare completam 402 anos


Os Sonetos de Shakespeare (The Sonnets) constituem uma coleção de 154 poemas sob a forma estrófica
do soneto inglês que abordam uma galeria de temas tais como o amor, a beleza, a política e a morte.

Foram escritos, provavelmente, ao longo de vários anos, para no final, serem publicados, exceto os dois primeiros, em uma coleção de 1609; os número 138 ("When my love swears that she is made of truth") e 144 ("Two loves have I, of comfort and despair") haviam sido previamente publicados em uma coletânea de 1599 intitulada The Passionate Pilgrim.

Os Sonetos foram publicados em condições que, todavia hoje seguem sendo incertas. Por exemplo, existe uma misteriosa dedicatória no começo do texto onde um certo "Mr. W.H." é descrito pelo editor Thomas Thorpe como "the only begetter" (o único inspirador) dos poemas; se desconhece quem era essa pessoa. A dedicatória se refere também ao poeta com a igualmente misteriosa frase "ever-living", literalmente imortal, mas normalmente aplicado a uma pessoa já morta. Mesmo que os poemas tenham sido escritos por William Shakespeare, não se sabe se o editor usou um manuscrito autorizado por ele ou uma cópia não autorizada. Estranhamente, o nome do autor está dividido por um hífen na capa e no começo de cada página da edição. Estas controvérsias têm incentivado o debate sobre a autoria das obras atribuídas a Shakespeare.

Os primeiros 17 sonetos se dirigem a um jovem, incentivando-o a casar-se e a ter filhos, de forma que sua beleza possa ser transmitida às gerações seguintes. Este grupo de poemas é conhecido com o nome de procreation sonnets (sonetos da procriação).

Os sonetos que vão do 18 ao 126 também são dirigidos a um jovem, porém agora ressaltando o amor que é descrito com muito lirismo.

Os compreendidos entre o127 e o152 abordam temas como a infidelidade, a resolução para controlar a luxúria, etc.

Os últimos dois sonetos, o 153 e o 154, são alegóricos.

~ Estrutura ~

Cada soneto é formado por quatro estrofes, três quartetos e um terceto final, compostos em pentâmeros iâmbicos (o verso também usado nas obras dramáticas de Shakespeare) com um esquema de rima abab cdcd efef gg (forma que hoje em dia é conhecida como soneto shakespereano). Há três exceções: os sonetos 99, 126 e 145. O número 99 tem quinze versos. O 126 consiste em seis tercetos e dois versos brancos (sem rimas) escritos em letras itálicas. Por outro lado, o 145 está em tetrâmetros iâmbicos, e não em pentâmeros. Com frequência, o começo do terceiro quarteto assinala a volta do verso no que o tom do poema muda, e o poeta expressa uma revelação ou aparição.

~ Personagens ~

Três são os personagens aos que se dirigem a maioria dos sonetos: um bonito jovem, um poeta rival e a dama morena; convencionalmente, cada um destes destinatários é conhecido pelo sobrenome de, respectivamente, o Fair Youth, o Rival Poet e a Dark Lady. A linguagem lírica expressa admiração pela beleza do jovem, e que mais tarde mantém uma relação com a Dark Lady. Desconhece-se se os poemas e seus personagens são fictícios ou autobiográficos. Se fossem autobiográficos, as identidades dos personagens estariam abertas ao debate. Diversos especialistas, especialmente A. L. Rowse, têm sugerido identificar os personagens com figuras históricas.

~ Fair Youth ~

O “Fair Youth” é um jovem sem nome a quem se dirigem os sonetos que vão do 1 ao 126. O poeta descreve o jovem com uma linguagem romântica e carinhosa, um fato que tem levado vários comentaristas a sugerir uma relação homossexual entre os dois, considerando que outros interpretam como um amor platônico.

Os primeiro poemas da coleção não sugerem uma relação pessoal estreita; pelo contrário, neles se recomendam os benefícios do matrimônio e de ter filhos. Com o famoso soneto 18 ("Shall I compare thee to a summer's day": Deveria comparar-te a um dia de verão), o tom muda dramaticamente para uma intimidade romântica. O soneto 20 se lamenta explicitamente de que o jovem não seja uma mulher. A maioria dos seguintes sonetos descreve os altos e baixos de um relacionamento, culminando com um caso, digamos assim, entre o poeta e a Dark Lady. O relacionamento parece terminar quando o Fair Youth sucumbe aos encantos da dama.

Tem havido numerosas tentativas de se identificar o amigo misterioso. O protetor de Shakespeare durante algum tempo, Henry Wriothesley, terceiro conde de Southampton, é o candidato que mais vezes tem sido sugerido para essa identificação, ainda que o último protetor de Shakespeare, William Herbert, terceiro conde de Pembroke, foi recentemente cogitado como outra possibilidade. Ambas as teorias estão relacionadas com a dedicatória dos sonetos a 'Mr. W.H.', "the only begetter of these ensuing sonnets" (o único inspirador dos seguintes sonetos): as iniciais podiam ser aplicadas a qualquer dos condes. Sem dúvida, já que a linguagem de Shakespeare parece em certas ocasiões indicar que o amigo seja alguém de um status social mais elevado que o deles, poderia não ser assim. As aparentes referências à inferioridade do poeta podem ser simplesmente partes da retórica da submissão romântica. Uma teoria alternativa, exposta no relato de Oscar Wilde "The Portrait of Mr. W. H." aponta a uma série de jogos de palavras que poderiam sugerir que os sonetos foram escritos para um jovem ator chamado William Hughes (Mr. W. H.); sem dúvida, o conto de Wilde reconhece que não há evidências da existência de tal pessoa. Samuel Butler, por sua vez, acreditava que o amigo fosse um marinheiro, e recentemente Joseph Pequigney ('Such Is My love') sugeriu ser um desconhecido plebeu.

~ The Dark Lady ~

Os sonetos do 127 ao 152 se dirigem a uma mulher geralmente conhecida como a “Dark Lady”, pois de seus cabelos dizem que são pretos e de sua pele que é morena. Estes sonetos têm um caráter explicitamente sexual, diferentemente dos escritos ao "Fair Youth". Da leitura se percebe que o jovem dos sonetos e a dama mantiveram uma relação apaixonada, mas que ela lhe foi infiel, possivelmente com o "Fair Youth".

Humildemente, o poeta se descreve como calvo e de meia idade no momento da relação.

Muito se tem imaginado em numerosas ocasiões identificar a "Dark Lady" com personalidades históricas, tais como Mary Fitton ou a poeta Emilia Lanier, que é a favorita de Rowse. Alguns leitores têm sugerido que a referência a sua pele escura poderia sugerir uma origem espanhola ou mesmo africana (por exemplo, na novela de Anthony Burgess sobre Shakespeare, Nothing Like the Sun). Outras pessoas, pelo contrário, insistem em afirmar que a Dark Lady não é mais do que um personagem de ficção e que nunca existiu na vida real; sugerem, afinal, que a tonalidade da pele da dama não deve ser entendida literalmente senão como representação do desejo pecaminoso da luxúria como oposta ao amor platônico ideal associado com o "Fair Youth".

~ The Rival Poet ~

O poeta rival é, às vezes, identificado com Christopher Marlowe ou com George Chapman. Sem dúvida, não há evidências contundentes de que o personagem tenha uma correspondência com alguma pessoa real.

~ Temas ~

Os sonetos de Shakespeare são, frequentemente, mais sexuais e prosaicos que as coleções de sonetos contemporâneas de outros poetas. Uma interpretação disto é que os sonetos de Shakespeare são, em parte, uma imitação ou uma paródia da tradição de sonetos amorosos petrarquistas que dominou parte da poesia européia durante três séculos. O que Shakespeare faz é converter a "madonna angelicata" em um jovem ou a formosa dama em uma dama morena. Shakespeare viola também algumas regras sonetísticas que haviam sido estritamente seguidas por outros poetas: fala de males humanos que não tem nada a ver com o amor (soneto 66), comenta assuntos políticos (soneto 124), faz gracejos sobre o amor (soneto 128), parodia a beleza (soneto 130), joga com os papéis sexuais (soneto 20), fala abertamente sobre sexo (soneto 129) e inclusive introduz engenhosos matizes pornográficos (soneto 151).

~ Legado ~

Além de situar-se ao final da tradição sonetística petrarquista, os sonetos de Shakespeare podem também ser vistos como um protótipo, ou inclusive como o começo, de um novo tipo de moderna poesia amorosa. Após Shakespeare ser descoberto durante o século XVIII — e não só na Inglaterra — os sonetos cresceram em importância durante o século XIX.

A importância e influência dos sonetos se demonstram na inumerável série de traduções que se tem feito deles. Até hoje, só nos países de língua germânica, já foram feitas centenas de traduções completas desde 1784. Não há nenhuma língua importante que não tenham sido traduzidos, incluindo o Latim, Turco, Japonês, Esperanto, etc.; e até em alguns dialetos.


Karolliny K. Lorak¹²³

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